Dilma na Guiné Equatorial e eu quando fui preso e
deportado...
Lendo o noticiário à propósito da viagem da presidenta Dilma
a mais uma dessas cúpulas onde se copula politicamente muitas ideias, mas não
se fecunda nada, relembrei das minhas aventuras como membro de uma precursora e
bem eclética equipe de marketing político pela África no início dos anos 90,
liderada por Geraldo Walter de Souza Filho, o saudoso Geraldão, com as
presenças ilustres de Ricardo Noblat, Fernando Barros, Ana Maria e os não menos
ilustres Maurício Rossi, Hamilton Oliveira, Nestor Amazonas e muitos outros.
Fizemos um trabalho muito rico em experiências com o MPLA em Angola que - não
por culpa nem por puro mérito nosso - ainda se perpetua no poder desde dos anos
70, sempre com a ajudinha de brasileiros.
Mas o caso que vou relembrar se refere a uma viagem para a
Guiné, onde se dizia que o ditador de então e ainda hoje mandatário supremo do
país, pretendia fazer uma abertura política. Havia um partido oposicionista
exilado em quase sua totalidade na Europa, há longos 14 anos, depois do
sanguinário golpe perpetrado por este que até hoje esta no poder. Ele
simplesmente havia matado o tio que era o presidente e mais quatro mil
opositores ao passar de uma semana no poder.
Ricardo e Geraldão foram convencidos que lá teríamos uma
outra campanha política, desta feita levando à disputa um partido oposicionista
ao poder. "Com o povo, pelo povo e para o povo", já seria copiado por
nós nessa época.
Pois, então, formou-se uma equipe composta por quatro bravos
guerreiros do marketing que na companhia do líder oposicionista, na época
exilado em Madrid, chegariam na capital Malabo, para documentar o início das
negociações entre oposição e governo para a tão sonhada abertura política.
O plano era chegar em Douala, na República dos Camarões,
pegar os vistos na embaixada da Guiné, seguir para São Tomé e Príncipe, onde
Miguel Trovoada, presidente, receberia e apoiaria como intermediário o nosso
cliente e de lá partiríamos para o ilhéu capital Malabo, 300 quilômetros do
continente. Como todos podem observar, uma capital geograficamente confortável
para qualquer ditador - imagina Brasília nessa situação.
Lá fomos nós, saindo de São Paulo no dia 08 de Dezembro de
1993.
Eu, Ruy Rodrigues, Popy Ribeiro, e um outro sujeito que não
me recordo o nome dele agora. Acho que esse branco com relação ao companheiro
que esqueci o nome não é por acaso e vocês vão perceber o porquê mais na
frente.
Desembarcamos em Zurique, na Suíça, de lá seguimos para
Douala cruzando o deserto do Saara numa classe executiva tomando champanha e
comendo canapés da Swissair. Uma maravilha! Lá em baixo e bem pequenininho,
víamos as torres de exploração de petróleo no maior deserto do mundo e cá as
branquelas nos servindo no maior conforto possível.
Chegamos em Douala. Uma cidade onde se via a destruição das
florestas africanas sendo transportadas pelas centenas de carretas que
circulavam pelas ruas da cidade dividida por etnias e gangues fomentadas, desde
a sua ocupação, por ingleses e franceses. Por sinal, um aspecto bastante
peculiar eram os bairros divididos até mesmo pela língua. Haviam uns em que se
falava francês e outros em que se falava inglês. Até a propaganda de outdoor
era - a mesma - em uma língua e em outra. Na época, lá também estava
acontecendo uma campanha política e o cartaz de um dos candidatos ostentava um
bem produzida foto dele ao lado de um imponente e ameaçador leão, apoiado num
criativo e não menos ostensivo slogan: “Homem coragem, homem presidente!”.
Conseguimos os vistos, como já havia sido planejado. Em
Douala, encontraríamos com o nosso cliente que a partir dali seguiria conosco
até o glorioso dia do retorno à pátria amada.
Hospedados no hotel Meridien, passávamos o tempo na piscina
bebendo lá pressione - grandes canecas de chopp - enquanto Ruy não se cansava
de medir a temperatura local dentro e fora da piscina com um moderno relógio
que havia adquirido na Suíça e que contava com esse indispensável(?) serviço meteorológico.
Vistos em Mãos, partimos para São Tomé. Oh vidão! Hotel
Tivoli, praias maravilhosas e uma interminável espera pela recepção - encontro
oficial - do presidente Miguel Trovoada. Comendo, bebendo e dormindo. Foi lá
que apreciei pela primeira vez os saborosos bifes de tartaruga e carne de
macaco oferecidos em pequenos restaurantes do povo local. No hotel nem pensar
nessas iguarias.
Amanhecia e anoitecia e nem sinal de “Trovoadas”. O tempo
firme e céu límpido fazia soprar sobre as nossas mentes uma certa incerteza de
que começava a ficar difícil chover em nossa horta. Quero dizer o seguinte:
como haviam sucessivos adiamentos do encontro entre nosso cliente e o nosso
principal interlocutor político, tudo levava a crer que algo não estava dando
certo.
Aí chega a hora de contar um fato curioso. Depois de uma
semana na bela ilha de São Tomé, o candidato nos chama e diz que teríamos de ir
ao Gabão encontrar com outra figura de pouca conversa, mas de muita ação. O
ditador Omar Bongô nos aguardava para uma reunião. Nos aguardava, assim como,
cara pálida? Ele só iria se fosse acompanhado por nossa equipe. Daria um certo
status e também garantiria sua integridade física. Como assim sua integridade
física? Estávamos correndo algum perigo de vida?
Foi aí que nosso bravo companheiro que, até agora, não
lembro a alcunha, amarelou e pediu pra ir embora, abandonando de vez a nossa
briosa expedição.
E lá fomos nós para o Gabão. Chegamos e fomos recebidos em
almoço pelo presidente no palácio de governo numa pompa só. Depois do lauto
banquete o nosso cliente foi ao tete-à-tete com famoso ditador que usava botas
com salto falso tentando esconder sua baixa estatura física e, também, moral.
Ao pedirmos as contas no hotel fui surpreendido por uma
chamada à suíte do nosso cliente - ele só se hospedava em suíte, dava status.
Foi ai que as coisas começaram a ficar mais turvas. O nosso querido cliente me
chamou ao canto da sala de estar da suíte e quase cochichando - talvez para a
esposa não escutar e se matar - me pediu 100 dólares. Quase caí para trás...
Quando de volta ao encontro dos companheiros, relatei o
ocorrido e ouvi um sonoro: fudeeeeeeeu!
Voltamos para São Tomé com o moral baixo. E bote baixo
nisso!
Ligamos para o Brasil e os caras - Ricardo e Geraldo - deram
um bando de gargalhadas e tentaram nos tranquilizar dizendo que os problemas
financeiros dele não eram nossos e que isso poderia ser algo como ter esquecido
de levar os dólares dele para a furtiva viagem ao Gabão.
O Natal se aproximava e o dia do desembarque em Malabo se
revestia de expectativas. A essa altura
queríamos entregar o mandú e voltar para o nosso doce lar no Brasil.
Até porque, como se diz lá no Recôncavo da minha Bahia, tudo
indicava que "aquele angu tinha caroço".
Comendo e bebendo dia e noite num hotel cinco estrelas num
paradisíaco arquipélago, eu engordava que nem uma porca. Era pão, vinho, peixe
e muito bacalhau. Foi ai que dei de cara com uma dúvida que me perturba até
hoje: bacalhau é peixe?
Vésperas do Natal e nosso cliente nos chama e sentencia:
depois de amanhã rumamos para Malabo. Mesmo sem as bênçãos de Miguel Trovoada,
que até aquele momento não tinha dado as caras com a gente, estava tudo certo e
tranquilo para aterrissarmos na famigerada capital da Guiné.
Só que teríamos de alugar um avião para o translado, pois
sem o apoio logístico prometido por Trovoada, se não fosse de avião fretado, só
de saveiro navegando por uns sete longos dias.
Conseguimos um bimotor pertencente a um mercenário libanês
que, por três mil dólares, ele levava a trazia a trupe. Tudo acertado, partimos
no início da tarde do dia 22 de dezembro.
Notei que dentro do avião o nosso cliente suava um pouco
fora do normal, até porque dentro da aeronave estava até fazendo frio. Mas...
vamos em frente.
Depois de quase 90 minutos de voo, o piloto num português
sofrível relata que estava sendo observado por dois caças. Logo em seguida
começa um diálogo pouco amisto e muito objetivo que, mesmo entre ruídos da
comunicação via rádio, conseguíamos ouvir um sonoro "go back!". Em
seguida e sem pestanejar o nosso bravo mercenário fez o que no surf se chama de
manobra radical e em segundos a proa deu lugar a popa e já navegávamos de volta
ao arquipélago do escroto do Trovoada.
Um silêncio ensurdecedor tomou conta de todos dentro da
minúscula aeronave e depois que alguém peidou, respiramos profundamente e quase
que em uníssono perguntamos: o que foi que aconteceu?
O libanês que mais parecia um Nacib corneado, gaguejando
respondeu que eles - os amigos dos caças - mandaram voltar dali mesmo senão
derrubariam nossa aeronave libertária.
Mais gaguejando que nosso colega baiano, Gaguinho Fotógrafo,
nosso cliente tentava esboçar uma explicação para o ocorrido e esbravejava um
"isso não vai ficar assim".
Pousamos na nossa segura ilha decididos a abandonar tudo e
tentar retornar depois do réveillon de 1994.
Nossos chefes Geraldão e Noblat nos "convenceram"
a passar o Natal por lá, nos garantindo que contatos da Europa teriam
assegurado que tudo não passava de ruído na comunicação - eles gostavam muito
dessa expressão - e que logo após o "nascimento do menino Jesus" nos
seríamos recebidos com festa em Malabo, onde a promissora oposição estava com
tudo organizado para a uma grande recepção.
Neste Natal de 1993, acredito que ganhei uns cinco quilos de
gordura adiposa com tantas guloseimas numa ceia maravilhosa feita apenas para
nós, os únicos hóspedes do hotel a ficarem para passar o Natal por lá. Naquela
época, não se fazia muito turismo por aquelas bandas como hoje.
Dia 28 chegou com a certeza de que a nossa expedição seria
coroada de glórias. E fomos nós mais uma vez com o mercenário libanês voando
rumo a Malabo no final da tarde. O horário havia sido determinado pelo cliente
depois de falar com correligionários e acertar os pormenores da chegada, com
carreata e comício na praça da capital numa noite que anunciaria o alvorecer de
uma nova era para o povo da Guiné.
A viagem foi tranquila, os caças não nos afugentaram e
pousamos como previsto no início da noite. Ao nos aproximarmos do hangar de
desembarque, achei meio estranho que as milhares de pessoas previstas na
calorosa e garantida recepção não podiam ser vistas no mirante do aeroporto.
E
fui ficando um pouco apreensivo quando percebi um pelotão bem armado do
exército com cara de poucos amigos a nos aguardar na pista.
Um silêncio mais
ensurdecedor ainda que o da primeira viagem assolou o interior do nosso bimotor.
Paramos e antes mesmo que o avião desligasse de vez os
motores, alguém abriu a porta aeronave e entre olhares fui escolhido para ser o
primeiro a pisar em solo ilhéu.
Fui também o primeiro a apresentar o passaporte e ser preso
imediatamente. tentei argumentar que tinha um visto devidamente oficializado
pela embaixada em Douala e um calango de patente pediu que eu localizasse o tal
visto no passaporte e o apresentasse. Logo que o mostrei, ele sacou um lápis e
escreveu sem titubear: cancelado com exclamação no final. Assim foi comigo e
com todos os outros da equipe. Nosso cliente, Dom Carmello, foi se afastando de
nós sob escolta e depois de algumas horas detidos e sem saber o que poderia
acontecer, recebemos um ordem imediata de embarque e assim fomos expulsos da, hoje promissora república
petrolífera africana, onde nossa chefe de Estado se encontra para discutir
investimento sob o manto de mais uma ditadura sanguinária de mais de 30 anos.
Mas esse negócio de ditadura nunca incomodou o atual partido que governa o
Brasil há 10 anos. Até porque ditadura no país dos outros é refresco.
Ah, antes que se fechasse as portas da aeronave eu tive a
pachorra de gritar: Adiós, Dom Carmello, adiós!!!
P.S.: Inicialmente detido, nosso bravo opositor de esquerda
logo virou um destacado executivo da empresa petrolífera do regime ditador e,
pelo que se vê hoje nas noticias sobre essa cúpula, deu certo e prosperou. E a
tal democracia que ele representava como baluarte da esperança do seu povo
sofrido ficou para depois. Bem depois!
Texto de José Américo Moreira da Silva
Fotos de Popy Ribeiro (Exceto a aérea que é do google)